O ano de 1968 foi conturbado em diversos pontos do mundo: as greves operárias e estudantis do Maio francês, a passeata dos Cem Mil no Brasil contra a ditadura, os protestos contra a guerra do Vietnã e pelos direitos civis nos EUA e o massacre de mais de 300 estudantes mexicanos na praça Tlatelolco na Cidade do México, no dia 2 de outubro, portanto, duas semanas antes dos protestos dos atletas negros – massacre que também neste mês completa quase meio século de impunidade.
Na foto famosa está presente também o segundo colocado naquela prova, o australiano Peter Norman, que alcançou a final dos 200 metros depois de executar uma fantástica corrida nas semifinais com o tempo de 20’22’’ – que ainda iria superar na final, fazendo 20’06’’. Os dois corredores dos EUA, Tommie Smith e John Carlos, fizeram 19’83’’ e 20’10’’, respectivamente. “O Jato” foi o primeiro homem na história olímpica a correr os 200 metros livre abaixo dos 20’.
Por muitos anos a participação de Peter Norman apenas compunha a foto famosa. Em seu enterro, em 2006, os dois atletas norte-americanos estavam presentes e muitos textos e filmes se fez sobre o australiano. O enterro foi no dia 9 de outubro, portanto, também se registra neste outubro os 10 anos da morte do corajoso atleta que optou por não se omitir.
“Norman era um branco natural da Austrália, um país que tinha leis de apartheid rigorosas, quase tão rígidas como as da África do Sul. Havia tensão e protestos nas ruas da Austrália na sequência de pesadas restrições à imigração não-branca e às leis discriminatórias contra os aborígenes”, escreveu o italiano Ricardo Gazzaniga, a partir de “velho artigo de Gianni Mura” - os dois textos estão disponíveis no final deste artigo. O post de Gazzaniga viralizou na internet ano passado. Mas a história de Peter Norman já havia virado documentário e textos denunciaram o elevado preço que o jovem pagou por sua ousadia ao alinhar-se aos colegas de pódio: “É coisa de vocês, poderia ter dito Norman, mas não disse e nunca se arrependeu e os outros dois também. Todas as coisas que a foto não diz”, escreveu Gianni Mura no “velho artigo”. Peter Norman manteve-se discreto no pódio, mas ostentou no peito esquerdo o adesivo da OPHR. Foi perseguido e discriminado a ponto de ser ignorado durante as Olimpíadas de Sidney, de 2000, em seu próprio país. Mesmo tendo superado por 13 vezes o tempo de qualificação para os 200 metros e 5 vezes o de 100 metros, não foi enviado para representar a Austrália nas Olimpíadas de Mônaco, em 1972.
Panteras Negras – 50 anos
Por trás dos gestos dos dois medalhistas havia uma tragédia ainda maior, a perseguição promovida pelo FBI e pelo governo dos EUA aos Panteras Negras, o BPP (Black Panther Party – Partido dos Panteras Negras). No artigo “Quando o FBI liquidava os Panteras Negras”, publicado na revista francesa Manière de Voir, de agosto e setembro de 2005, Marie-Agnès Combesque destaca: “as autoridades norte-americanas não gostam de seus revolucionários, sobretudo quando eles são negros. Para acabar com os Panteras Negras, os seus serviços secretos não hesitaram em recorrer ao assassinato”.
A oposição à guerra do Vietnam, os assassinatos de Malcon X (1965) e de Martin Lither Kig (1968) radicalizaram uma geração de militantes negros. Mesmo antes do atentado terrorista de 11 de setembro de 2011, utilizado para justificar toda uma legislação de exceção, os militantes pelos direitos civis sempre foram descritos por policiais, procuradores, juízes e jornalistas como terroristas e criminosos. “E contra eles, o poder político empregou todos os meios, desde uma lei anti-Máfia até campanhas repressivas, posteriormente criticadas até pelo Congresso” dos EUA.
Trechos do texto de Marie-Agnès Combesque:
Os Panteras Negras foram as primeiras vítimas desse arsenal repressivo. Eles formavam o grupo de prisioneiros mais numeroso, cerca de umas 50 pessoas. Criado em Oakland, na Califórnia, em outubro de 1966, por dois estudantes de direito, Huey P. Newton e Bobby Seale, o BPP se inspirava no discurso de Malcon X. Utilizando uma retórica marxista, o BPP procurava organizar os guetos. Seu programa político de 10 pontos reunia uma série de reivindicações políticas e sociais e reclamava o direito de auto-defesa - chegaram traduzir para o inglês o “Manual do guerrilheiro urbano” do brasileiro Carlos Marighella. Se apresentando como uma vanguarda revolucionária, os Panteras Negras não pretendiam somente libertar os negros de seu ambiente repressivo: “para nós, se trata de uma luta de classes, entre a classe trabalhadora proletária, que agrupa as massas, e a minúscula minoria que é a classe dirigente. Os membros da classe trabalhadora, qualquer que seja sua cor, devem unir-se contra a classe dirigente, que os oprime e os explora (…) Nós cremos que conduzimos uma luta de classe e não um combate racial”, escreveu Bobby Seale.
Os Panteras organizaram cantinas escolares para as crianças dos guetos, associações de moradores, clínicas, distribuição de roupas. Eles editaram um jornal, alistaram os mais motivados e impressionaram os outros. O BPP não contou, provavelmente, com mais do que 5.000 militantes entre 1967 e 1971, mas sua aura ultrapassou largamente sua potência numérica nos centros urbanos deserdados.
A partir do verão de 1967 o FBI ficou em alerta e redirecionou um de seus programas de contra-espionagem, o Cointelpro [Counter Inteligence Program – Programa de Contra Inteligência, criado em 1956 por Edgar Hoover, o poderoso diretor do FBI, para vigiar as atividades dos membros e simpatizantes do Partido Comunista americano], em direção aos movimentos nacionalistas negros: “o objetivo é de desmascarar, romper, desorientar, desacreditar, ou, ao menos, neutralizar as atividades das organizações nacionalistas negras que pregam o ódio”, escrevia o Diretor do FBI em 4 de março de 1968. Com a ajuda dos serviços locais da polícia, essas instruções seriam aplicadas ao pé da letra.
Durante uma entrevista ao New York Times, em 8 de setembro de 1968, Hoover declarou que o BPP “constitui a maior ameaça possível à segurança interna do país”.
Para os Panteras Negras, os três anos que se seguiram foram devastadores. Às técnicas clássicas de repressão (vigilância, escutas telefônicas, cartas anônimas, agentes duplos) o FBI, via o Cointelpro, somou o assassinato. Somente no ano de 1970, 38 militantes foram mortos por ataques organizados por policiais locais contra os escritórios do BPP. Em 4 de dezembro de 1969, o líder dos Panteras de Chicago, Fred Hampton, foi executado na sua cama. Seu guarda-costas, William O’Neal (que depois se suicidou), foi recrutado pelo FBI de Chicago dois anos antes: foi ele que forneceu aos policiais a planta do apartamento, facilitando o disparo certeiro.
Alguns meses mais tarde, Geronimo Prat, um dos membros mais atuantes do BPP de Los Angeles, foi preso e acusado pela morte de uma mulher branca, crime que teria sido cometido em um bairro de Los Angeles, mesmo que, segundo diversos testemunhos – confirmados por declarações de agentes infiltrados pelo FBI – Prat participava, em Oakland, de uma reunião de sua organização. Durante o processo, esses elementos de seu dossiê desapareceram misteriosamente. Condenado à prisão perpétua, Geronimo Prat foi libertado em 29 de maio de 1977, após 27 anos de prisão. Os representantes do sistema judiciário da Califórnia e a mídia reconheceram que ele foi vitima de uma maquinação.

As questões e dissensões fomentadas pelo Cointelpro no interior do BPP, ampliaram as divergências surgidas no enfrentamento político entre o “ministro da defesa”, Huey Newton, em Oakland, e Eldridge Cleaver, “ministro da informação” e responsável pela sessão internacional do BPP, que estava no exílio na Argélia. No fim de 1970, os militantes negros, divididos, perdendo apoio da esquerda branca liberal (também perseguida pela Cointelpro) começam a se enfrentar e provocaram diversas mortes na própria organização. Alguns partidários de Eldridge Cleaver fundam o clandestino Black Liberation Army (BLA - Exército Negro de Libertação).
No fim de 1971, o BPP estava dizimado pela repressão, sua influência diminuíra inexoravelmente e seus dirigentes reduziram suas ações à base de Oakland. Em paralelo, eles decidem participar do jogo político “normal”, apoiando candidaturas do Partido Democrata nas eleições locais. Os militantes radicais, os mais experientes, estavam no exílio ou na prisão. O mesmo destino reservado aos soldados do BLA, expostos a um novo programa de contra-espionagem: Newkill (New York killing of Police Officers), diretamente comandado pela Casa Branca, pelo presidente Richard Nixon, o ministro da Justiça, John Mitchell, e Edgar Hoover, o inamovível diretor do FBI. Anthony Jalil Botton, Albert Nuh Washington, Herman Bell são presos em penitenciárias de segurança máxima em Nova York.
Uma segunda onda repressiva é deslanchada no começo dos anos 1980 e terá como objetivo, de novo, os movimentos negros, mas também militantes independentistas porto-riquenhos e radicais brancos. No outono de 1981, no Estado de Nova York, militantes do BLA e dos radicais brancos Weather Underground (são militantes do SDS - Students for a Democratic Society - Estudantes para uma sociedade democrática) atacam um furgão de transporte de dinheiro da Brinks [empresa dedicada a transporte de valores]. O objetivo era conseguir recursos para sustentar sua luta. O assalto, frustrado, termina em tiroteio, que acaba com a morte de três policiais. Nos meses e anos que se seguem, uma fantástica operação de repressão resulta na prisão de dezenas de militantes, clandestinos ou não. Muitos serão julgados segundo a lei RICO (Racketeer Influenced Corrupt Organizatins) votada no Congresso em 1970.
A lei RICO foi elaborada para lutar contra o crime organizado. O objetivo foi de fornecer aos procuradores os meios de perseguir os membros de gangues criminosas acusadas de haver participado de, ao menos, dois atos reprováveis durante um tempo determinado, permitindo condená-los, automaticamente, a 20 anos de prisão. Sob a presidência de Ronaldo Reagan, a lei RICO serviu diversas vezes para condenar membros de organizações políticas, principalmente após o ataque à Brinks. Sekou Odinga (BLA), David Gilbert (ex-SDS), Marilyn Buck (ex-SDS-BLA), recebem extravagantes penas de prisão, sem possibilidade de liberdade vigiada: 80 anos para Buck, 75 para Gilbert, 40 anos para Odinga. Nos 20 anos da lei RICO pode-se adicionar condenações mais longas, para aqueles que foram considerados culpados de participar da fuga bem sucedida de Assata Shakur, em 1979. A título de comparação, uma militante anti-aborto que promoveu dezenas de atentados com explosivos contra clínicas que praticavam a interrupção voluntária da gravidez foi condenada a 10 anos de prisão e obteve a liberdade condicional 40 meses mais tarde.
Depois de um quarto de século, os movimentos nacionalistas negros e seus aliados pagaram elevado tributo à repressão e continuam, até hoje, a ela submetidos. Mesmo que o Programa Cointelpro tenha sido oficialmente desativado em 1971, quando foi revelado por acaso por um grupo de estudantes que bisbilhotava o FBI, seus efeitos se prolongam até hoje. A nota enviada por Edgar Hoover à reunião dos agentes do FBI em 25 de março de 1968, foi executada com precisão: a Cointelpro deve “impedir a aliança de grupos nacionalistas negros (…), impedir o nascimento de um “messias” que poderia unificar e entusiasmar o movimento nacionalista negro (…) é necessário que os jovens negros moderados compreendam que, se eles sucumbem ao ensinamento revolucionário, eles serão revolucionários mortos”.
Uma outra nota, datada de 3 de abril, expõe precisamente os termos da alternativa: “Não seria melhor ser uma vedete esportiva, um atleta bem pago ou um artista, um empregado ou um operário (…) em vez de um negro que só pensa em destruir e que, fazendo isso, destrói sua própria casa, não ganhando para si e para seu povo mais do que o ódio e a suspeita dos brancos?”
#BlackLivesMatter - A vida dos negros tem importância
A situação de Mumia Abu-Jamal é exemplar. Abu-Jamal é um escritor e rádio-jornalista negro comemorado internacionalmente. Autor de seis livros e centenas de colunas e artigos, organizador e ex-membro do Partido dos Panteras Negras e apoiador da organização Movimento radical da Filadélfia. Abu-Jamal passou os últimos 30 anos na prisão, quase todo esse tempo em confinamento solitário no corredor da morte na Pensilvânia. Foi condenado pelo assassinato do policial Daniel Faulkner, em 1981, mas sempre reafirmou sua inocência. A organização Anistia Internacional considera que foi negado a Mumia um julgamento justo.
Rachel Wolkenstein defende Abu-Jamal. É uma ativista política e advogada que há mais de 40 anos é defensora dos direitos e liberdades civis, “desafiando as injustiças do sistema judicial americano em processos criminais e opondo-se à pena de morte racista”. Segundo Wolkenstein, 50 dias após a Procuradoria Distrital da Philadelphia admitir a derrota em sua tentativa de legalmente linchar Mumia Abu-Jamal, o departamento de Correções da Pensilvânia (DOC) foi obrigado a abandonar seus esforços para manter Mumia na solitária,“em face de uma campanha de protesto internacional cada vez maior, pressão de ações legais e a coragem política e integridade de Mumia”. No dia 27 de janeiro de 2012, uma sexta-feira de manhã, Mumia foi transferido para população geral da prisão.
No dia 13 de agosto de 2012, a juíza Pamela Dembe, do Pennsylvania Department of Corrections (DOC), condenou Abu-Jamal à prisão perpétua sem liberdade condicional. A nova sentença, também ilegal segundo Wolkenstein, pois Jamal não foi ouvido e não teve o direito de contestar sua sentença.Wolkenstein explica que todas as fases, incluindo penas "obrigatórias", exigem um procedimento formal, garantindo à pessoa a ser condenada o direito de ser ouvida e de contestar sua sentença.
Em seu primeiro telefonema externo, dirigido à população, em 28 de janeiro de 2012, Mumia transmitiu a seguinte mensagem por meio de sua esposa, Wadiya Jamal: “meus queridos amigos, irmãos e irmãs, quero agradecer-lhes por seu trabalho duro e real apoio. Não estou mais no corredor da morte, não estou mais no buraco, eu estou na população. Esta é apenas a primeira parte e eu agradeço o trabalho que vocês fizeram. Mas a luta é pela liberdade!”
Recentemente, Abu-Jamal ocupou novamente espaço na imprensa internacional quando teve seu pedido de tratamento para hepatite C negado por um juiz federal. A hepatite C atinge cerca de 6.000 prisioneiros no Estado da Pensilvânia, nos EUA. Seus apoiadores, que se espalham por todo o mundo, mudaram o foco de suas manifestações para apoiar o seu acesso a cuidados médicos. Ele está atualmente detido na prisão estadual SCI-Mahanoy em Frackville, Pensilvânia.
Em entrevista no Democracy Now, para a jornalista Amy Goodman, desde a prisão, Abu-Jamal falou sobre os 50 anos dos Panteras Negras: “estou feliz em anunciar que estamos republicando We Want Freedom: A Life in the Black Panther Party, por uma nova editora do Brooklyn, chamada Common Notions. É um livro que me deixa muito orgulhoso, porque conta a história do Black Panther Party, sem esconder nada, apresenta críticas e tudo, pessoal e política. E eu acho que em uma época em que BlackLivesMatter é o maior e mais importante movimento dos direitos civis em décadas, é tempo para que as pessoas aprendam com os nossos pontos altos, baixos, erros e sucessos. Se você ler o programa de dez pontos que Bobby Seale e Huey P. Newton escreveram em outubro de 1966, você vai se assustar. Ele vai chocá-lo por perceber que nada mudou em 50 anos. Para citar Young Jeezy, o rapper, “nós ainda estamos vivendo no inferno”. E por isso temos de mudar essa realidade e é por isso que o trabalho continua para todos nós".
O #BlackLivesMatter, numa tradução livre, “a vida dos negros importa”, foi criado em 2012, após o assassino de Trayvon Martin. George Zimmerman foi absolvido por seu crime e Trayvon, de 17 anos, foi postumamente colocado em julgamento por seu próprio assassinato. O movimento fundamenta-se na experiência de pessoas negras que resistem ativamente à desumanização da sociedade. "#BlackLivesMatter é uma chamada à ação e uma resposta ao racismo anti-negro, virulento, que permeia nossa sociedade", anunciam no sítio eletrônico do movimento. “É uma contribuição única que vai além de execuções extrajudiciais dos negros pela polícia e vigilantes”.
#BlackLivesMatter está trabalhando para um mundo onde a vida do negro já não seja sistemática e intencionalmente alvo de assassinato, destacam. “Afirmamos nossa contribuição para esta sociedade, nossa humanidade e nossa capacidade de recuperação em face da opressão mortal. Temos de colocar o nosso suor e amor para os negros, para a criação de um projeto político para tirar o hashtag das mídias sociais e colocá-lo nas ruas. A chamada de que a vida dos negros é relevante é um grito de guerra para que todas as vidas negras lutem pela libertação".
O movimento representa uma nova geração de militantes. Eles combatem a violência policial, a injustiça econômica, o patriarcado. Sempre buscando reinventar formas de ação, considerando a longa história de luta por igualdade racial. Por isso, Abu-Jamal ressaltou a importância da reedição do livro com a história dos Panteras Negras.
Para saber mais sobre a luta do movimento negro nos EUA e sobre os presos políticos da democracia norte-americana, clique na faixa ao lado.
Artigo de Riccardo Gazzaniga traduzido e original, em italiano.
Artigo de Gianni Mura original, em italiano, e traduzido.