Do Brasil, de fato, o FMI nunca foi escorraçado, como na Argentina dos Kirchner. A Argentina era um dos dois únicos países da América Latina, ao lado da Venezuela, excluído do artigo 4º do estatuto do FMI, que determina as regras para a análise de dados.
O Brasil buscou o FMI por três vezes durante o governo de FHC, em 1998, 2001 e em agosto de 2002. O último acordo assinado por Pedro Malan, então Ministro da Fazenda, foi de US$ 30 bi. E já naquele tempo a culpa era do Lula, o então presidente do PT, Luis Inácio Lula da Silva, candidato à presidência da República.
A necessidade apresentada para se submertar ao FMI foi a volatilidade ampliada pela disputa eleitoral daquele ano, entre Lula e José Serra, o atual ministro do governo golpista liderado por Michel Temer. De imediato, logo após as eleições, o Brasil precisou fazer um saque de US$ 6 bilhões. O total dos recursos não foi utilizado. Passadas as eleições daquele ano, Lula, eleito presidente da República pela primeira vez, quitou, em abril de 2003, a dívida com o organismo internacional no valor de US$ 4,2 bilhões.
No dia 6 de outubro de 2009, já no segundo governo de Lula, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o então diretor-gerente do Fundo, Dominique Strauss-Khan, assinaram um acordo em que o Brasil emprestava US$ 10 bilhões ao Fundo. O Brasil tranformou-se de devedor a credor, ou financiador, e havia alcançado reservas cambiais de mais de US$ 200 bilhões.
Ao contrário de antes, nos governos de FHC, e de agora, no governo golpista de Temer, em que os ministros da Fazenda “convidam” o FMI, nos governos de Lula e de sua sucessora, Dilma Rousseff, era o Fundo que tomava a iniciativa de buscar o Brasil. Em 2011, as autoridades brasileiras voltaram a ser procuradas pelo FMI sobre a possibilidade de novo empréstimo. É que as reservas internacionais do Brasil haviam crescido novamente. Segundo o Relatório de Gestão das Reservas Internacionais do Banco Central do Brasil, em 31 de dezembro de 2010, as reservas do país totalizavam US$ 288,57 bilhões, montante 20,7% maior que o de 31 de dezembro de 2009, ano do primeiro empréstimo.
E esse crescimento continuou. Em 2014, 12 anos depois da submissão brasileira ao Fundo, as reservas internacionais eram de US$ 379 bilhões. E assim permaneceram, com ligeira queda, até o golpe de 2016. Quando Dilma foi destituída estavam na faixa dos R$ 350 bilhões. Apesar das reservas internacionais serem o principal indicador da saúde das contas externas, o discurso dos golpistas continua a ser o de desgoverno das gestões petistas.
Volta a ortodoxia e o FMI
A eleição de Mauricio Macri na Argentina e o golpe que levou Temer ao poder no Brasil trouxeram de volta a ortodoxia na economia e o FMI. No último dia 30 de setembro, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, afirmou que a avaliação feita pelo FMI sobre a economia brasileira está de acordo com a análise do governo. “As sugestões do FMI estão bastante em linha com aquilo que nós estamos propondo”. Na verdade, a frase deveria ser invertida: Meirelles e o governo é que pensam como o FMI.
No dia anterior, o Fundo havia divulgado suas recomendações, após reunir-se com Meirelles. Recomendações é o eufemismo utilizado para dizer que sem sua aceitação não há empréstimo e apoio.
Mas o que propõe o organismo? Revisão da fórmula para o cálculo do salário mínimo, a aprovação de um teto para os gastos públicos e as reformas da Previdência e trabalhista no Brasil.
O teto para os gastos públicos está materializado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que ficou conhecida por congelar por 20 anos as despesas governamentais. A medida recessiva tem inspiração nas políticas do Fundo e define o limite dos gastos à inflação do ano anterior.
As outras reformas estruturais propostas são mudanças regulatórias para tornar o programa de concessões mais atraente a investidores estrangeiros, que investiriam em infraestrutura. O FMI defende também uma abertura da economia, com redução de tarifas e barreiras não tarifárias. Tudo em perfeita sintonia com o que pretende o governo golpista e vice-versa, a internacionalização submissa da economia brasileira.
Segundo os técnicos do FMI, “a fórmula para as revisões do salário mínimo afeta o crescimento de pensões e outros benefícios e é, portanto, uma grande fonte de pressão fiscal no médio prazo. O vínculo entre benefícios sociais e o salário mínimo merece revisão, enquanto a fórmula do salário mínimo deveria ser revisada para melhor refletir as melhoras em produtividade”.
Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), entre 2002 e 2016, o salário-mínimo no Brasil teve 77% de valorização real, o que quer dizer que cresceu esse porcentual acima da inflação. Esse processo foi consolidado a partir de 2011, quando foi estabelecido por lei (Lei 12.382/2011) um critério objetivo para definir o reajuste: o índice de inflação do ano anterior, acrescido da taxa de crescimento da economia de dois anos antes.
A política de aumentos reais do salário mínimo foi tão significativa que na campanha eleitoral de 2014, o candidato oposicionista, Aécio Neves, tentou retirar do governo a sua autoria, atribuindo à Câmara dos Deputados, e assim a “todos os partidos”, a responsabilidade pela política, que agora pretendem extirpar.
Essa política está diretamente vinculada à maior distribuição de renda registrada no país na última década, responsável pela progressão social de amplas camadas da sociedade brasileira, que tanto incomodou a classe média e foi fartamente usada na campanha do impeachment. E o tema da distribuição de renda, ou o seu oposto, da concentração de renda, é uma das críticas mais contundentes às política liberais preconizadas pelo Fundo.
E foi o que disseram o vice-diretor do departamento de pesquisas do Fundo, Jonathan D. Ostry, o seu chefe divisional, Prakash Loungani, e seu economista, Davide Furceri, em polêmico artigo publicado em junho de 2016.
A controvérsia já começou pelo título: “Neoliberalismo: Superestimado?”. Os neoliberais dizem que “na América Latina, a palavra 'neoliberal' é uma expressão politizada usada pela esquerda para desacreditar seu inimigo ideológico”, afirmou à BBC Steve Hanke, “economista do Instituto Cato, centro americano de pesquisa, de viés conservador, que atuou como assessor de vários governos, inclusive da Venezuela e da Indonésia durante a aplicação deste tipo de política”. (Aqui o artigo original, em inglês)
Assim, a crítica foi de que o texto era ideológico, como são tratadas todas as críticas às medidas neoliberais, como se as ações propostas pelo Fundo fossem eminentemente técnicas e inquestionáveis. Despolitizar o debate da economia é a maneira de entregá-lo aos técnicos e não discutir suas repercussões na vida das pessoas. Seriam medidas técnicas, necessárias e inadiáveis.
O texto começa lembrando que Milton Friedman, considerado pelo jornal britânico The Economist o economista mais influente da segunda metade do século XX, saudou o Chile, em 1982, como um “milagre econômico”. Quase uma década antes, durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973–1990), o Chile havia se transformado, em laboratório e modelo das políticas neoliberais, “etiqueta usada mais pelas críticas do que pelos arquitetos das políticas” (ressalva feita pelos autores, ao contrário do que afirma Hanke), que se assenta em dois principais alicerces.
1. a desregulamentação e a abertura dos mercados nacionais, incluindo mercados financeiros, aumentando a concorrência estrangeira na economia;
2. o papel do Estado é reduzido por meio de privatizações e definição de limites na capacidade dos governos para executar os déficits fiscais e acumular dívida.
A referência ao Chile abre e encerra o artigo: “a experiência do Chile e de outros países sugerem que nenhuma agenda fixa produz bons resultados para todos os países sob todas as circunstâncias”. E ainda vão mais longe: “criadores de políticas e instituições como o Fundo Monetário Internacional devem ser guiados não pela fé, mas pela evidência do que tem funcionado”.
Mas a afirmação que ganhou manchetes do artigo foi que “em vez de gerarem crescimento, algumas políticas neoliberais têm aumentado a desigualdade e colocado em risco uma expansão duradoura”. É uma declaração insólita, afirmou a BBC, “para um organismo, que, mais do que nenhum outro, é associado no imaginário popular a uma expansão de políticas econômicas ortodoxas ou neoliberais”.
Claro, foi um escândalo, mas um bafejo. A instituição não fez nenhum autocrítica, ao contrário, poucos meses depois, volta à Argentina e ao Brasil fazendo o que sempre fez. Coincidentemente ou não, no dia seguinte da reunião do FMI com Meirelles em Brasília, o diretor do FMI para o Hemisfério Ocidental, Alejandro Werner, esteve na Argentina: “temos uma visão positiva do que está ocorrendo na Argentina”, disse em Buenos Aires, segundo o jornal El Pais.
Nos dois países o Fundo voltou discreto. Mas sua presença sempre foi marcante e avassaladora, seja por tomar conta da economia seja por transformar o governo do país em vassalo de suas diretivas. Essa, aliás, é outra característica do organismo, retirar dos governos e dos representantes eleitos (que não se aplica no caso do Brasil de hoje) a legitimidade da decisão sobre os rumos da economia e transferir para si o poder conferido pelo povo. É a desnacionalização do poder de decidir, já que o Fundo, “guiado pela fé liberal”, atende aos interesses do grande capital financeiro, que nem sempre é compatível com aqueles das nações.
“O fundo está aparentemente entusiasmado com a mudança de Macri, mas parece abaixar um pouco seu tom entusiasta precisamente porque, apesar de sua imagem ter melhorado nos últimos anos, o FMI continua tendo um passado na Argentina e em toda a América Latina que o transformou, aos olhos de milhões de latino-americanos, em um dos responsáveis pela grande crise dos anos 90”, escreveu Carlos E. Cué para El Pais, em “Após 10 anos ausente, FMI conclui seu regresso à Argentina com aplausos a Mauricio Macri”.
“Werner apoiou Macri claramente”, afirmou o jornalista, “mas tentou evitar polêmicas. Não quis entrar na possibilidade de que o ajuste realizado pelo presidente com o apoio do fundo e de muitos outros tenha sido muito duro, como evidencia o dado oficial publicado na quarta-feira: a pobreza na Argentina chegou a 32%, um número enorme em um país historicamente rico e somente superado em 2001, quando a economia explodiu e a pobreza superou os 50%. Werner disse que era um dado muito recente e o FMI ainda não pôde analisá-lo”.
Depois de nove meses de governo, Mauricio Macri admitiu que está longe de atingir o “pobreza zero”, como prometera na campanha eleitoral. Aliás, o que reconheceu é o que a Igreja Católica vinha denunciando: um em cada três argentinos é pobre. Segundo o Indec, Instituto Nacional de Estatística e Censos, o escritório encarregado das estatísticas oficiais, responsável por fornecer a primeira cifra oficial de pobreza da era macrista, no primeiro semestre do ano, 32% dos entrevistados eram pobres. Sobre uma população registrada de 27 milhões de pessoas (de um total nacional de 45 milhões de habitantes) em 31 conglomerados urbanos, 8,8 milhões não cruzam o limiar mínimo de renda. Deste número, 1,7 milhão são indigentes, quer dizer, não ganham o suficiente para cobrir suas necessidades alimentares.
Diz o texto de Cué: “na verdade, desde que Macri chegou ao poder, de acordo com os números usados até agora pela Igreja e que o presidente aceitou, há 1,4 milhão de novos pobres. O presidente assume que esse é o principal dado pelo qual será julgado, a partir de agora, seu governo”.
A ação do FMI nos dois países é uma tentativa de referendar internacionalmente a medidas recessivas e de ataques a direitos sociais. Do mesmo modo, três dias antes do FMI, o secretário do Tesouro norte-americano, Jacob Lew, também havia elogiado as reformas pretendidas pelo governo brasileiro. Lew deu as declarações pouco antes de iniciar uma reunião com o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles.
A péssima reputação do FMI para toda a América Latina regressa com os governos conservadores de Argentina e Brasil e emprestá-lhes o descrédito que goza o próprio organismo. Mas isso não deve causar nenhuma surpresa, segundo o que escreveu Inacio Vieira no The Intercept: “Michel Temer diz que impeachment aconteceu porque Dilma rejeitou Ponte para o Futuro”. Temer deixou escapar o “segredo” na sede da Sociedade Americana/Conselho das Américas (AS/COA), em Nova York, na quarta-feira, dia 21 de setembro. Temer disse que começou a articular o golpe junto com seu partido exatamente porque Dilma recusou-se a aceitar o programa neoliberal do PMDB intitulado “Ponte para o Futuro”. Portanto, é natural que FMI e EUA manifestem seu apoio às medidas do golpismo. Eles foram os inspiradores.