Domingo, 29 Mai 2016 22:46

EUA, diplomacia de especialistas

Os embaixadores representam seu país e defendem seus interesses. Com os EUA não é diferente. A diplomacia americana, no entanto, ganhou um nível excepcional de especialização. Analisando o perfil dos três últimos embaixadores no Brasil, é possível perceber o zelo e a precisão na escolha e a perfeita sintonia com a realidade brasileira e com os objetivos norte-americanos no Brasil e na região. A chegada de Liliana Ayalde para o lugar anteriormente ocupado por Thomas Shannon e sua substituição por Peter Michael McKinley revelam um trabalho cuidadoso, objetivamente direcionado para fins específicos.

Os Estados Unidos trocaram o seu embaixador no Brasil em 2016. Mais especialmente, saiu a embaixadora Liliana Ayalde e entrou Peter Michael McKinley. A primeira esteve no Paraguai até às vésperas do golpe parlamentar contra Fernando Lugo. O seu substituto ajudou o governo direitista de Alan Garcia, no Perú, a fazer acordos de livre-comércio. Coincidência ou não, os dois perfis se encaixam direitinho aos dois momentos da realidade brasileira. E a memória remete aos acontecimentos de 31 de março de 1964. Documentos já revelados mostram que os EUA participaram ativamente do golpe e se prepararam para intervir em caso de resistência. Mesmo depois, continuou monitorando os generais-presidentes para garantir seus intereses.

Liliana Ayalde deixou o cargo de embaixadora dos EUA. Indicada pelo Departamento de Estado em 1º de agosto de 2013, só chegou ao Brasil por volta das 8h20 de 14 de setembro de 2013, vinda dos EUA, procedente de Washington, diretamente a Brasília, num voo comercial da companhia American Airlines.

Antes, entre 2008 e 2011, serviu no Paraguai. Deixou o país poucos meses antes do golpe de Estado contra o presidente Fernando Lugo.

Por 24 anos trabalhou na Usaid — a agência estadunidense de “ajuda internacional”, acusada de ser um dos principais braços da CIA, esparramando dinheiro para instituições pelo mundo que defendem "a democracia" - como acontece com a oposição venezuelana durante o período bolivariano.

Pouco mais de um ano depois da posse de Lugo, em 7 dezembro de 2009, Liliana Ayalde enviou para o departamento de Estado dos Estados Unidos um telegrama – vazado pelo Wikileaks e publicado pela Agência Pública – em que expressa suas ressalvas com relação ao governo paraguaio. “Temos sido cuidadosos em expressar nosso apoio público às instituições democráticas do Paraguai – não a Lugo pessoalmente”.

E foi mais longe em correspondência aos EUA: “O controle político da Suprema Corte é crucial para garantir impunidade dos crimes cometidos por políticos hábeis. Ter amigos na Suprema Corte é ouro puro”, confessando a "crucial" ingerência direta nos assuntos internos do Paraguai.

Lugo foi destituído em um processo de impeachment pelo Senado Paraguaio por 39 votos contra 4, depois de um rápido julgamento político em que foi considerado culpado por “mau desempenho”, sendo substituído pelo vice-presidente Federico Franco. O processo de impeachment durou menos de 36 horas. Lugo declarou que considerava o impeachment como um golpe, “organizado pelos EUA”.

Aqui no Brasil Ayalde chegou pouco mais de dois meses após as grandes manifestações de junho de 2013. E também após o escândalo de espionagem revelado em reportagem publicada no dia 5 de junho de 2013 pelo jornal britânico The Guardian. O jornalista Glenn Greenwald revelou documentos liberados por Edward Snowden que apontavam a Agência Nacional de Segurança (NSA) como responsável por coletar dados de ligações telefônicas de milhões de cidadãos americanos a partir do programa de monitoramento chamado de PRISM.

Mas esse seria somente o início.

No dia 1º de setembro, o programa Fantástico da Rede Globo apresentou novas denúncias de espionagem. Documentos ultrassecretos indicavam que os Estados Unidos monitoraram comunicações da presidenta Dilma Rousseff e de seus assessores próximos em 2011. Esse material fazia parte de uma apresentação privada para a agência de segurança nacional dos Estados Unidos. A reportagem é de autoria da repórter Sônia Bridge e de Glenn Greenwald, o jornalista do The Guardian que havia revelado o escândalo de espionagem.

No dia 8 de setembro foi feita nova revelação: documentos mostravam que a Petrobras havia sido objeto de espionagem pelo programa de monitoramento da NSA. A empresa estatal de petróleo, depois, seria também alvo da operação Lava Jato, que terá papel decisivo na destituição da presidente braasileira.

Dilma Rousseff tinha uma visita oficial aos Estados Unidos prevista para o dia 23 de outubro. A embaixadora chega exatamente quando havia dúvidas sobre a realização dessa visita, que acabou realmente não acontecendo.

2013 tem ainda outra particularidade. Segundo Snowden, “a comunidade de espionagem dos USA e a embaixada norte-americana têm espionado o Brasil nos últimos anos como nenhum outro país na América Latina. Em 2013 o Brasil foi o país mais espionado do mundo”.

Assim, Liliana Ayalde chega como embaixadora ao Brasil, no momento em que a relação bilateral entre os dois países trocava o sinal da amizade pelo da desconfiança.

E foi embora em 11 de janeiro de 2017, depois do golpe de Estado brasileiro, quando todas as indicações apontavam para a plena retomada entre as relações Brasil-EUA.

Logo no dia seguinte à aprovação do impeachment na Câmara dos Deputados, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), candidato a vice de Aécio Neves na chapa derrotada por Dilma em 2014, viajou aos Estados Unidos. O senador é figura importante no processo de desestabilização do governo Dilma. Ficou famosa sua frase dita em seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC), na capital paulista: “não quero que ela saia, quero sangrar a Dilma, não quero que o Brasil seja presidido pelo Michel Temer (PMDB)”.

Provavelmente o senador tenha mudado de ideia em relação a Temer, pois sua viagem aos Estados Unidos foi exatamente para defender o golpe que levou Temer à presidênca da República.

O Senador Nunes reuniu-se com o presidente e um membro do Comitê de Relações Internacionais do Senado, Bob Corker (republicano, do estado do Tennessee) e Ben Cardin (democrata, do estado de Maryland), e com o Subsecretário de Estado e ex-Embaixador no Brasil, Thomas Shannon, além de comparecer a um almoço promovido pela empresa lobista de Washington, Albright Stonebridge Group, comandada pela ex-Secretária de Estado de Clinton, Madeleine Albright e pelo ex-Secretário de Comércio de Bush e ex-diretor-executivo da empresa Kellogg, Carlos Gutierrez.

Thomas Shannon foi exatamente o Embaixador no Brasil desde 2009, antecessor de Liliana Ayalde. Antes de ser substituído, Shannon foi chamado duas vezes pela chancelaria brasileira para dar explicações sobre a espionagem de Washington. Portanto, foi o embaixador no período em que Edward Snowden disse que o Brasil foi mais espionado. Deixando o Brasil, Shannon foi indicado para ocupar o cargo de novo embaixador dos Estados Unidos na Turquia - claro que é somente mais uma coincidência que, em 2016, a Turquia tenha sido objeto de uma tentativa de golpe de estado que o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan atribui aos Estados Unidos.

Oficialmente, a visita de Nunes aos Estados Unidos estava previamente agendada. Não se pode esquecer, no entanto, que Nunes é aliado de primeira hora de José Serra, o tucano derrotado por Dilma na eleição de 2010, que assumiu o ministério das Relações Exteriores do governo golpista.

Em um dos documentos vazados pelo site WikiLeaks é revelado o compromisso de Serra com Patricia Pradal, diretora de Desenvolvimento de Negócios e Relações com o Governo da petroleira norte-americana Chevron. Em dezembro de 2009 registra-se o seguinte diálogo entre o atual Chanceler interino brasileiro e a representante da Chevron, concorrente direta da Petrobrás: “deixa esses caras [do PT] fazerem o que eles quiserem. As rodadas de licitações não vão acontecer, e aí nós vamos mostrar a todos que o modelo antigo funcionava... E nós mudaremos de volta”.

O “modelo antigo” é o de concessão, diferente do sistema de partilha, que garante à Petrobras o controle sobre a exploração do petróleo do pré-sal. Destruir o sistema de partilha é um dos compromissos do golpista e é também uma grande cartada para reduzir a autonomia brasileira na gestão de seus recursos naturais. O controle sobre a economia brasileira é um dos objetivo dos tratados de livre-comércio.

Após o golpe de 2016 foi um projeto de Serra no Senado Federal que abriu para o ataque sistemático ao "modelo novo" e para a venda das reservas do pré-sal e a retirada da Petrobras do controle exclusivo sobre as reservas brasileiras.

Chegamos, assim, a Peter Michael McKinley.

A destituição temporária de Dilma foi aprovada no domingo, dia 15 de maio de 2016. Na noite da quarta-feira da semana seguinte, dia 25 de maio, o Itamarty confirmava Peter Michael McKinley como novo embaixador dos Estados Unidos no Brasil. A indicação havia sido feita no mesmo dia pelo presidente dos EUA, Barack Obama. O governo interino reconheceu o embaixador antes mesmo dele ser aprovado pelo Senado dos EUA.

Peter McKinley fala português e espanhol com fluência. É filho de pais estadunidenses, mas nasceu numa fazenda da Venezuela - que, também, por acaso, estava há anos na alça de mira da diplomacia dos EUA. O novo governo brasilieiro seria um aliado importante contra a Venezuela.

Chegou ao Brasil um embaixador com a experiência de ter servido em um país em guerra, o Afeganistão. Mas também especialista em América Latina.

Na década de 1980 serviu na Bolívia e, entre 1990 e 1994, em Londres. Em seguida, passou por Moçambique, Uganda e Bélgica.

Antes de assumir o cargo no Afeganistão em janeiro de 2015, foi embaixador no Peru entre 2007 e 2010, e na Colômbia entre 2010 e 2014.

No dia 24 agosto de 2007, o G1 publicou texto falando da chegada do novo embaixador ao Perú, citando a agência EFE: “O presidente do Peru, Alan García, declarou nesta quinta-feira que o novo embaixador dos Estados Unidos em Lima, Peter Michael McKinley, é um emissário do ‘bom propósito’ do Governo de George W. Bush para promover o tratado de livre-comércio entre os dois países”.

Pois é isso. O golpe foi consumado e logo reconhecido pelos EUA. Ayalde pôde ir prestar seus serviços em outras áreas.

A especialidade mais necessária ao momento é outra. Chegou Mckinley.

Para quem vê tudo isso como mera coincidência ou maluquice de uma teoria da conspiração, basta lembrar a gravação preservada pela Biblioteca Lyndon Baines Johnson.

Lindon Johnson em foto de 1964

No dia 31 de março de 1964, o presidente Johnson falava ao telefone, a partir de seu rancho no Texas, com o subsecretário de Estado George Ball e com o secretário adjunto para a América Latina, Thomas Mann. Ball conta a Johnson a situação dos movimentos militares no Brasil para derrubar o governo de João Goulart, visto pelos funcionários norte-americanos como um esquerdista intimamente associado ao Partido Comunista Brasileiro.

Johnson dá a Ball luz verde para apoiar ativamente o golpe se for necessário algum suporte dos EUA. “Eu acho que devemos tomar todas as medidas que podemos, estar preparados para fazer tudo o que for necessário fazer”, ordena. Numa aparente referência a Goulart, Johnson declara “simplesmente não podemos suportá-lo” (“we just can’t take this one”). “Eu iria mais além e poria meu pescoço um pouco para fora” (“I’d get right on top of it and stick my neck out a little”), determinou a Ball.

Anos mais tarde, em depoimento sob juramento perante uma Comissão do Senado dos EUA, o embaixador Gordon declarou que “nem a embaixada americana nem eu pessoalmente desempenhamos qualquer papel no processo” [golpe de 1964].

No entanto, documentos desclassificados e divulgados em 1974 revelaram que, de fato, o governo dos EUA havia planejado com militares brasileiros para derrubar o governo Goulart e que chegou a preparar apoio naval e militar para apoiar as forças anti-Goulart em caso de uma guerra civil.

A resistência ao golpe militar entrou em colapso rapidamente e o presidente Lyndon B. Johnson reconheceu imediatamente o novo regime militar, que ficou no poder por vinte e um anos. Telegramas do Departamento de Estado oferecem um vislumbre do planejamento das operações clandestinas a partir de Washington para dar suporte aos generais no poder. (Documento nº 12. EUA apoia golpe de estado militar brasileiro, 1964

O "estar preparados para fazer tudo o que for necessário fazer” vindo do presidente da nação mais poderosa do planeta não é coisa para amadores. Entre este "tudo" estava muito dinheiro e a "ajuda" na formação dos torturadores.

A Agência Pública produziu em 7 de abril de 2013 reportagem com o título “Para justificar assistência militar à ditadura, EUA diziam que tortura era exceção”. Conforme o texto, “em 1976 e 1977, Departamento de Estado liberou US$ 661 mi em créditos para compras de armas pelos militares; para embaixador, dinheiro não fomentava ‘práticas repressivas’”.

Ainda mais: “’Como a tortura é vista como uma prática de uma pequena minoria e não das forças militares brasileiras como um todo, a assistência militar americana não é tida como fomentadora de práticas repressivas’. Foi com essa frase que o então embaixador dos EUA em Brasília, John Crimmins, encerrou o despacho diplomático enviado a Washington em 12 de março de 1976. Tratava-se de uma avaliação oficial sobre a situação dos direitos humanos no país, para que o país pudesse continuar recebendo assistência do governo americano”. (seria outro dos especialistas da diplomacia dos EUA?)

“Mas o relatório enviado por Crimmins, assim como sua esdrúxula conclusão, são desmentidos pelos próprios documentos da embaixada encontrados na Biblioteca Pública de Documentos Diplomáticos dos EUA (PlusD), do WikiLeaks. Em diversos despachos, os representantes americanos mostram estar plenamente cientes das torturas praticadas pelos agentes da repressão. Mesmo assim, os EUA investiam pesado em armar e treinar os militares brasileiros e consideravam essa assistência estratégica para manter a proximidade com os militares no poder”, diz o texto da Agênca Pública.

Documento da CIA informando decisão do general Geisel de autorizar assassinatos.Outro elemento indicador da estreita relação dos EUA com o golpe é o trabalho da CIA (serviço de inteligência dos EUA), acompanhando estreitamente a ação dos governos militares. Em memorando datado de 11 de abril de 1974, assinado pelo então diretor da CIA Willian Colby e endereçado ao secretário de Estado à época, Henry Kissinger, a agência de espionagem informava que, “em 30 de março de 1974, o presidente brasileiro Ernesto Geisel reuniu-se com o general Milton Tavares de Souza (chamado General Milton) e com o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente os chefes de saída e chegada do Centro de Inteligência do Exército (CIE). Esteve presente também o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI)”.

E continua o documento: “O general Milton, que fez a maior parte da conversa, delineou o trabalho da CIE contra o alvo subversivo interno durante a administração do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici. Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e disse que métodos extra-legais devem continuar a ser empregados contra subversivos perigosos. A este respeito, o General Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pela CIE durante o ano passado, aproximadamente. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade”.

O general-presidente, Ernesto Geisel, disse ao chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) à época, João Baptista Figueiredo, que se tornou presidente entre 1979 e 1985, que as execuções deveriam continuar.

O documento perdeu o sigilo em dezembro de 2015, mas somente ganhou publicidade em maio de 2018, a partir de pesquisa do professor Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV).

No seu Sumary (Resumo), destaca o documento: “Colby relatou que o presidente Geisel planejava continuar a política de Médici de usar meios legais extras contra subversivos, mas limitaria as execuções aos subversivos e terroristas mais perigosos(sic)”.

O texto do documento pode ser lido, em inglês, no site de histórico do Departamento de Estado dos EUA.

Desculpe! "Direitos Humanos" e "defesa da democracia", os discursos preferidos pela diplomacia dos EUA, não couberam neste texto.

Última modificação em Terça, 04 Junho 2019 11:13

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